Memento
A amnésia é uma patologia da memória que não se pode confundir com o esquecimento: é uma perda parcial da memória, que pode ser provocada por encefalites, traumatismos cranianos, enfartes, lesões cerebrais, alcoolismo, drogas, etc. Diz-se que a amnésia é retrógada, se afeta as recordações antigas; diz-se que é anterógrada, se impede a conservação ou retenção de novas recordações. A personagem principal do filme Memento, Leonard, sofre de amnésia anterógrada, facto que o impede de reter novas informações: todas as pessoas que encontra, é como se as visse sempre pela primeira vez. Quem sofre desta patologia da memória experimenta uma espécie de miopia para o futuro.
A memória é o fundamento de todos os comportamentos e conhecimentos dos seres humanos, além de se encontrar associada às emoções e capacidade de decisão: é a memória que assegura a adaptação ao meio ambiente e gera a atribuição subjetiva de significações às nossas vivências. Nós somos seres feitos de memória, coletiva e individual. A própria consciência pessoal depende do bom funcionamento da memória.
É a memória que assegura o «eu», o facto de sabermos «quem» somos, é o suporte autobiográfico, enfim, a nossa identidade pessoal. Perder a memória é perder no fundo o nosso sentido de humanidade: se perdêssemos a memória deixaríamos de ser aquilo que somos - aquilo que somos, que fomos e que seremos depende em grande parte da memória. É este património individual que nos torna únicos e nos assegura a nossa identidade pessoal. É a memória que nos permite representar o mundo. Não há nada pior para um ser humano do que sofrer uma doença que afeta severamente a sua memória: perdemos tudo o que fomos ao longo da vida - viver na perda progressiva da memória é equivalente a uma «morte em vida» numa vida em que o sujeito afetado já não sente como sua, nem se sabe como sua. Sem memória, não nos sabemos como seres humanos. Há algo mais importante do que isto na nossa vida?
O filme Memento pode confirmar a importância que a memória tem na nossa vida: é um apelo à memória e à inteligência do próprio espetador, envolvendo-o numa história intrincada e rodeada de perplexidades, revelações e mistérios que são tão densos e indecifráveis como o quadro mental fragmentado da personagem principal. Tal como acontece nos outros filmes de Christopher Nolan, o espetador é convidado pelo realizador a reconstituir o drama e a tentar, pela sua memória e imaginação, resolver o «quebra-cabeças», colocando-se na ótica da vítima.
Memento conta-nos a história de Leonard, que sofre de amnésia anterógrada (este tipo de memória segue-se de um trauma cerebral e é caracterizada pela incapacidade de lembrar novas informações: lembranças de experiências recentes desaparecem, mas a pessoa consegue recordar com clareza os eventos anteriores ao trauma - todavia, há uma incapacidade cognitiva de criar novas memórias a longo prazo, como se a personagem principal vivesse condenada a ser uma espécie de prisioneiro de um tempo presente sempiterno, como se toda a sua vida se repetisse ciclicamente num purgatório confinado a uma memória fugaz de instantes presentes) devido a uma pancada que sofreu na cabeça, provocada pelo criminoso que supostamente violou e matou a sua esposa. Leonard recorda-se ao longo do filme de ter disparado e atingido mortalmente um dos criminosos, mas o segundo escapou depois de o ter agredido violentamente. A polícia descartou esta possibilidade, tendo afirmado a inexistência de um segundo criminoso, e encerrou o caso.
Ao longo do filme, Leonard procura o assassino que arruinou a sua vida, para fazer justiça com as próprias mãos. Como não se consegue lembrar de nada por mais de alguns minutos, pois este não tem qualquer tipo de memória recente, ou seja, qualquer coisa que faça, qualquer pessoa que conheça, é imediatamente esquecida, Leonard faz anotações de tudo o que vê, ouve, sente, e até das coisas mais rotineiras, como fazer a barba. A sua memória é registada em fotos Polaroid e as mais cruciais são tatuadas no seu corpo, numa loja de tatuagens, e muitas vezes por ele mesmo. Durante esta desesperada busca, ele conhece o ambíguo Teddy, que diz ser polícia, e a personagem Natalie que promete ajudá-lo, porém, esta dá-nos indicações que o está somente a usar para o seu próprio interesse.
Na mão esquerda de Leonard há uma tatuagem que diz "lembrar de Sammy Jankis". Sammy também sofreu de uma amnésia anterógrada depois de um acidente. Seria esta personagem real? O filme dá-nos pistas ambíguas. Leonard recorda ao telefone, quando se encontra no quarto do motel, que se tratou de um caso muito importante que ele investigou a fundo pessoalmente, pois trabalhava numa seguradora e interessava saber de Sammy Jankins era realmente uma pessoa doente e incapaz, ou se era um charlatão. Leonard concluiu que se tratava de uma pessoa afetada psicologicamente na sua memória, mas que esta condição de doença mental não estava abrangida pelo seguro de saúde, e assim este não foi concedido. Leonard, todavia, acaba por reconhecer que se enganou na sua avaliação do caso, o que iria provocar a morte trágica da esposa de Sammy e o internamento compulsivo deste último.
Mas, na realidade, torna-se difícil perceber se a história de Sammy não será, afinal, a história de Leonard. As memórias que este retém do passado foram manipuladas por ele, criando uma realidade completamente oposta em relação ao que realmente aconteceu no passado. Isto acontece porque a nossa memória não é uma reprodução fiel do passado, uma vez que as recordações estão marcadas pela experiência, pelas emoções, pelos afetos, pelas representações sociais. A memória reconstrói, subjetivamente, os dados que recebe ao longo do tempo, dando relevo a uns, distorcendo ou omitindo outros. Há como que uma idealização do passado. As revelações de Teddy, no final do filme, são desconcertantes e podem ter influenciado o comportamento de Leonard em retrospetiva, motivando, aliás, que o percurso do vingador se voltasse contra o próprio Teddy.
Neste filme o ritmo rápido das cenas em preto e branco (passado) e a cor (presente) até à junção final do preto e branco com a cor, torna Memento ainda mais intrigante e obriga-nos a exercitar a nossa memória. Mostram o passado de Leonard antes do incidente e também são peças essenciais para a montagem deste filme "quebra-cabeças". Memento exige concentração.
Este filme mostra o quanto a memória é essencial à nossa sobrevivência, sem memória é impossível viver.
Há sem dúvida neste filme imensas «pontas soltas» e há sempre a possibilidade de questionar os dados apresentados nas sequências: o erro humano é o erro inerente à própria memória, uma faculdade cognitiva altamente falível. O próprio Leonard confessa o valor duvidoso da memória a Teddy: «A memória é pouco fiável... A memória não é perfeita. Não é mesmo nada credível. Pergunta à polícia: testemunhas oculares são pouco credíveis... A memória pode alterar a forma de um quarto ou a cor de um carro. É uma interpretação, não um registo. As memórias podem ser mudadas ou distorcidas, e são irrelevantes se estiveres na posse dos factos.» Este é um momento chave do filme, e como sabemos Memento é um filme acerca da memória, sobretudo sobre a forma como define a identidade pessoal, de que modo é uma faculdade mental necessária para o comportamento moral, apesar de ser terrivelmente falível, mesmo sabendo nós que assume uma função central na nossa experiência do mundo.
Pessoalmente, adoro todos os filmes que já vi do grande Christopher Nolan, então fiquem encantada com este. O filme Memento é extraordinário no alcance complexo da sua história e enredo, é uma obra que desafia e interroga os espetadores, exigindo uma reflexão atenta e crítica sobre o modo como experimentamos habitualmente a realidade. Memento não é apenas um «quebra-cabeças» psicológico, é igualmente uma tragédia filosófica que toca em questões muito profundas sobre o sentido da existência humana. A lição do filme parece clara: perder a memória é perder o nosso sentido de humanidade.